Há um perigo fascista em Itália?

18 de fevereiro 2024 - 11:42

A única forma de contrariar involuções democráticas, desastres sociais e fragmentação da classe trabalhadora com verdadeira eficácia e participação de massas é a capacidade de combinar a batalha democrática com a batalha social, salários e empregos, no âmbito de um projeto anticapitalista alternativo. Por Franco Turigliatto.

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Foto de duncan cumming/Flickr.
Foto de duncan cumming/Flickr.

O que é que se passa em Itália? Esta é a pergunta que muitas pessoas estão a fazer depois das imagens chocantes filmadas em Roma, na manifestação da Via Acca Larenzia, a 7 de janeiro de 2024, com centenas de braços de ativistas da Casa Pound estendidos na saudação romana e o grito coletivo fascista “Presente!”

Esta comemoração[1] , que se repete todos os anos mas que tinha agora sido circunscrita, assume atualmente um significado particularmente negativo porque ocorre num contexto de muitos acontecimentos semelhantes e convergentes e num contexto político e institucional muito diferente, o do governo Meloni e da extrema-direita dos Fratelli d'Italia e da Liga de Salvini.

O risco de um novo fascismo

Há então um perigo fascista em Itália? Se nos limitarmos aos anos 1930, claro que não; mas se compreendermos que o fascismo também se pode manifestar sob novas formas, como as involuções autoritárias profundas, a questão é pertinente. O perigo de derivas autoritárias é real e, até agora, as forças sociais e políticas da esquerda moderada subestimaram o governo Meloni, que interpretam como um executivo de direita “normal”. O erro é não ter em conta o salto qualitativo que representam os herdeiros do Movimento Social Italiano (MSI), ele próprio herdeiro do fascismo, que passaram a governar o país, e Ignazio La Russa que, exibindo um busto de Mussolini no seu gabinete, ocupa o segundo cargo mais alto do Estado, o de presidente do Senado.

Os perigos são grandes porque se inscrevem nos processos antidemocráticos e reaccionários que atravessam vários países europeus, produzidos pelas contradições do sistema capitalista e por décadas de políticas liberais antipopulares.

No dia da sua tomada de posse, Meloni explicou muito bem que o seu governo seria o governo de “Deus, da Pátria, da Família e das Empresas”, e que estas últimas gozariam da máxima liberdade de ação.

O cocktail envenenado do neoliberalismo e da extrema-direita

É por isso que não teve qualquer dificuldade em continuar o trabalho do anterior governo Draghi na gestão das políticas neoliberais de Bruxelas; hoje, a aceitação do novo Pacto de Estabilidade Europeu marca um regresso completo às políticas de austeridade, um alinhamento total com as escolhas dos Estados Unidos e a participação na corrida aos armamentos. Juntamente com as outras potências ocidentais, o governo de Meloni apoia totalmente o governo israelita e o massacre dos palestinianos em Gaza. Produziu também uma série de medidas económicas em benefício do grande capital, ao mesmo tempo que defende com unhas e dentes a evasão fiscal e os privilégios da pequena e média burguesia, a sua principal base eleitoral.

Ao mesmo tempo, prosseguiu uma política de perseguição e criminalização dos sectores mais frágeis da sociedade (pobres, migrantes, desempregados), fomentando divisões e oposições entre os trabalhadores, consciente de que o maior perigo poderia vir não da fraca oposição institucional do PD (Partido Democrático) e do M5S (Movimento 5 Estrelas), incapaz de estar em contacto com as forças sociais, mas do movimento dos trabalhadores. Para isso, Meloni teve de reabilitar todo o tipo de pensamento reacionário, o que abriu um novo espaço de ação às forças mais extremistas e violentas da direita, cada vez mais cobertas e protegidas pelos novos quadros políticos que chegaram ao governo.

A destruição das conquistas da Resistência

Este governo tem uma missão precisa: destruir o que foi uma verdadeira “religião civil” em Itália, isto é, a consciência democrática, antifascista e progressista que impregnou a história do país após a vitória da Resistência contra o fascismo, alimentada na altura pelas lutas dos trabalhadores que constituíram uma fortaleza para a democracia. Embora enfraquecida pelas derrotas sofridas pelo movimento operário, esta “religião civil” ainda está presente em vastos sectores da sociedade. Para os herdeiros do MSI, um grupo heterogéneo de líderes improváveis mas ameaçadores, esta ideologia democrática deve ser destruída e substituída pelo renascimento de todas as ideologias reacionárias, os mitos patrióticos, da falsa sacralidade da família e pela reescrita da história. É uma ação que está a ser levada a cabo passo a passo, mas com extrema determinação, expressa na propaganda, nos meios de comunicação social, mas também com um trabalho nas escolas por intermédio do ministro Valditara, que pretende apagar o passado em busca de uma vingança total. O objetivo final, consubstanciado nos planos de convulsão institucional, é o derrube total da Constituição saída da Resistência. O velho resistente e intelectual Gastone Cottino escreveu no seu último relato: “o estabelecimento, de uma forma mais ou menos autoritária, daquilo a que Gramsci chamava um regime reacionário de massas. Ora, esta referência é a mesma da atual direita governamental. Vê-se nas personagens, no que dizem, na sua vontade de mudar radicalmente a Constituição, no clima que se está a instaurar. Um clima em que não se tem de estar calado, mas está-se calado porque já não se tem conhecimento, já não se compreendem as coisas, já não se entende, já não se tem sentido da história. E, ao mesmo tempo, já se foi doutrinado”.

Uma estratégia dupla: institucionalização e ligação aos grupúsculos fascistas

Giorgia Meloni e o pessoal que trouxe consigo para o governo não vêm do nada; são todas pessoas que foram formadas no MSI e na sua ideologia fascista; a sua forma de se apresentarem como líderes tranquilos de direita não é nova. Os antigos dirigentes do MSI também se apresentavam como “fascistas de fato e gravata”; por um lado, procuravam a respeitabilidade institucional; por outro, mantinham relações estreitas com os bandidos fascistas. A sua história confunde-se com a dos terríveis acontecimentos do período da estratégia de tensão e dos massacres fascistas dos anos 1970, destinados a bloquear a força do movimento operário.

As relações entre os herdeiros do MSI e os bandos que se declaram abertamente fascistas nunca cessou completamente. Estes últimos sentem-se agora seguros do sua poder de agir, de serem protegidos e de poderem sair abertamente dos esgotos para onde tinham sido empurrados durante décadas pelo movimento operário e pelo seu impulso democrático. É por isso que a sombria comemoração da rua Acca Larenzia é um terrível aviso para o futuro sobre a forma como estas forças podem ser utilizadas contra as lutas dos trabalhadores e as lutas sociais, já enfraquecidas pelas leis repressivas do governo.

A passividade da social-democracia

Neste contexto, os apelos das forças da oposição e dos jornais da burguesia liberal para que Meloni e outros ministros façam declarações antifascistas parecem completamente ridículos. Não têm qualquer possibilidade de servir de travão aos desígnios autoritários dos FdI e da Liga que estão empenhados numa violenta competição no seio da coligação para ver quem consegue fazer mais barulho para conquistar ou defender o eleitorado reacionário e/ou de direita. É igualmente ridículo propor como alternativa a Meloni uma figura personagem como Draghi e as políticas europeias neoliberais, quando foram precisamente estas últimas que abriram o caminho à direita. Por último, o que é surpreendente é a atitude passiva e desorientada da intelligentsia, que tinha desempenhado um papel importante no passado em termos de defesa da democracia e de solidariedade com o movimento operário.

O objetivo final é o derrube total da Constituição. A peste – a autonomia diferenciada da Liga, que levará a uma diferenciação total dos salários e das condições de trabalho nas diferentes regiões, como será o caso da saúde pública e das escolas – e a cólera – o presidencialismo autoritário da Irmandade Italiana – estão ligadas e constituem um salto qualitativo na degenerescência da própria democracia burguesa que se verifica na Europa desde há alguns anos. [2]

Contra o “dividir para reinar” das forças fascistas, a unidade e a luta da classe operária

O único antídoto eficaz contra este governo e as forças políticas fascistas que o compõem e que gerem os interesses dos patrões e envenenam a sociedade é trabalhar para uma mobilização social de massas em defesa dos salários, das pensões, dos empregos e dos direitos sociais e políticos, para unir esta classe social que os capitalistas e os seus governantes querem dividir e fragmentar.

Esta é a tarefa de todas as forças políticas e sociais de esquerda, nomeadamente das grandes organizações sindicais, a começar pela CGIL, a maior organização de massas do país, com mais de cinco milhões de membros.

No entanto, não foi esse o caminho seguido pelas suas direções que durante meses prosseguiram uma política de espera passiva pela ação do governo, quando desde o primeiro dia deveriam ter dado o alarme para avisar os trabalhadores do perigo que corriam.

Nos últimos dias, multiplicaram-se os “gritos” contra a lei da autonomia diferenciada, com Landini (secretário da CGIL) à cabeça: “Mais fossos e desigualdades, menos direitos para os trabalhadores e os reformados… opor-nos-emos com todos os instrumentos que a democracia põe à nossa disposição, para impedir que o Governo divida o país e comprometa o seu futuro”. Numa entrevista ao diário La Repubblica, o secretário da CGIL enumerou todos os males do Governo, incluindo as grelhas salariais, os contratos de trabalho, a inflação, o emprego e a pobreza, as políticas industriais e as privatizações, convidando perentoriamente o Governo a “parar”… mas, mais uma vez, sem propor um plano de ação real e coerente.

Estas incertezas manifestaram-se na Assembleia Nacional da CGIL que discutiu sobretudo as opções possíveis para um referendo de revogação de uma série de leis anti-sociais e liberais, incluindo as sobre trabalho precário, mas adiou para outra reunião a escolha de um caminho para a mobilização dos trabalhadores. Esta seria tanto mais necessária quanto só num clima de efervescência social e de luta será possível vencer um eventual referendo para revogar a lei da autonomia diferenciada, evitando assim um desastre social sem precedentes desde o pós-guerra.

Os problemas salariais de milhões de trabalhadores, a braços com uma inflação que se aproxima dos 20% nos últimos dois anos, são enormes. Ao mesmo tempo, os problemas de emprego causados pelas reestruturações e deslocalizações de empresas, que são extremamente preocupantes, não suscitaram qualquer intervenção pública por parte do governo para os resolver. Pelo contrário, este relança as privatizações, a começar pelos correios, para obter liquidez. As grandes crises industriais culminaram no grupo siderúrgico (Mittal) e no setor automóvel, ou seja, na Stellantis e nas grandes indústrias conexas envolvidas, afetando centenas de outras fábricas. Cerca de 300.000 trabalhadores e respetivas famílias estão a ser afetados.

A luta combativa e militante de uma fábrica em Florença, a GKN, conduzida por um coletivo de fábrica muito determinado contra a deslocalização e para abrir uma nova fase de intervenção pública através da planificação de reconversões produtivas orientadas para a transição verde, poderia ter sido uma oportunidade para as direções sindicais ligarem todas as empresas envolvidas nas reestruturações, indo além da gestão perdedora da crise numa base casuística com o objetivo explícito de relançar a ação pública ligada à participação e ao controlo dos trabalhadores. Não foi esta a escolha que se fez.

A importância de construir um projeto alternativo ao fascismo

No plano político, a construção de um movimento antifascista tem sido até agora apenas uma prerrogativa das forças da esquerda radical, das correntes sindicais mais combativas e de setores intelectuais minoritários. Há muito a fazer para construir uma mobilização social e democrática de massas para lutar contra os perigos que ameaçam o futuro das classes subalternas.

Ainda retomando as palavras do velho resistente desaparecido: “Devemos também olhar para o presente. Um antifascismo verdadeiro deve alargar o seu compromisso à criação de uma sociedade oposta àquela que o novo fascismo – em continuidade com o velho – nos está a propor: Uma sociedade que promova a participação e não o culto do líder, que coloque no centro os interesses comuns e não os privados, que concentre os seus esforços na saúde e na educação, que procure a igualdade e condições de vida aceitáveis para todos “sem distinção de sexo, raça, língua, religião, opinião política, condição pessoal e social” (como exige o artigo 3º da Constituição). Uma sociedade aberta e solidária, capaz de acolher e rejeitar as políticas anti-migrantes, que são a fronteira racial do novo milénio.”

Por outras palavras, a única forma de contrariar as involuções democráticas, os desastres sociais e a fragmentação da classe trabalhadora com verdadeira eficácia e participação de massas é a capacidade de combinar a batalha democrática com a batalha social, os salários e os empregos, no âmbito de um projeto anticapitalista alternativo.



Notas:

[1] Esta rua de Roma, sede histórica do MSI, foi palco de uma manifestação em 1978, depois de dois activistas terem sido assassinados por “terroristas vermelhos” e um terceiro neofascista por um carabineiro. Quando o MSI se transformou em AN – Aliança Nacional – a sede continuou a ser ocupada pela ala mais extremista da galáxia fascista.

[2] 23 de janeiro de 2024 foi um dia inglório para a República e para a sua Constituição: a maioria de extrema-direita do Senado aprovou em primeira leitura o infame projeto de lei sobre a autonomia diferenciada, um ataque direto à Carta Constitucional de 1948, já muito manipulada nas últimas décadas. Os senadores do PD e do M5S cantaram o hino nacional e lançaram ataques virulentos contra a direita, mas teria sido preciso também apontar algumas setas aos astutos senadores de centro-esquerda que, em 2001, alteraram o Título V da Constituição, abrindo assim a brecha utilizada hoje pelas tropas fascistas-liguistas para o assalto final à Constituição democrática da Resistência.


Franco Turigliatto é dirigente da Sinistra Anticapitalista e foi senador entre 2006 e 2008, eleito pela Refundação Comunista.

Texto publicado originalmente na revista L’Anticapitaliste. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.